Uma coisa interessante sobre economia, é que não é incomum que
aquilo que se convêm chamar de “livre mercado” seja na verdade uma dimensão muito
específica de uma operação de inteligência de escala maior. Isso pode ser desde
um projeto de pesquisa sendo financiado por algo como o Human Ecology Fund (uma
fachada da CIA na Guerra fria) , ou o Kaiser-Wilhelm-Institute – KWI (que suportou
o Mengele em algumas pesquisas mais assustadoras do período, e era talvez uma
fachada da SS).
Aparentemente é financiamento privado de pesquisa mas ainda hoje num pós-guerra fria quando o uso de fachadas diminuiu, o financiamento privado por vezes na verdade é um contractor de algum governo. Na medida em que financiar desenvolvimento tecnológico sem governo,é meio fora da realidade, até o Starlink (relativamente autonomo de governo) se beneficia de tecnológia desenvolvida no contexto do DoD.
Interessante é que nos dois casos de financiamento de pesquisa, e em muitos outros as
conexões são tão indiretas entre a estratégia nacional maior, e a ponta final; que as pessoas envolvidas costumam sequer ter ciência do que de fato está acontecendo,
e qual sua função na engrenagem maior da qual fazem parte. Ou no mínimo não tem ciência do racional do por trás do que estão fazendo, e isso se traduz com o tempo em relatos confusos tipo o do John Perkins em “Economic Hitman”, sendo justo, tem algum tempo
que li o livro – então é bem por alto. No livro ele se descreve como um
consultor envolvido com projetos de construção pelo oriente médio, toda a
narrativa é bem intricada, talvez uma consequência de um trabalho em que o cara
cumpre missões, sem saber exatamente os “porquês”.
No geral a narrativa do Perkins gira em torno de contratos com construtoras americanas via embaixada no oriente médio...enfim é bem parecido com o que se tenta atribuir ao One Belt, one road hoje em dia.
E esse tipo de personagem, com histórias intricadas e meio
surreais, é uma figura relativamente comum quando você começa a pesquisar sobre
estruturas de inteligência e a operacionalização de estratégias de
inteligência.
Talvez seja daí que venha muito do que é o imaginário
em tornos das agências de inteligência hoje em dia.
Na sequencia uma perspectiva inicial sobre os pontos que o Le monde trouxe ao debate recentemente, colocando Lava Jato como peça em uma estratégia maior remontando aos tempos do Dick Cheney na Casa Branca.
"De um lado tem um set de interesses bem estruturados...do outro um idealismo perdido do judiciário BR, que acaba sendo instrumentalizado num vazio de coordenação da inteligência local...
Aliás a operacionalização de Inteligência no Brasil é
historicamente problemática, já que por
tradição ela se limita a olhar para questões internas, e agrega pouco ou nenhum
valor num contexto internacional.Na prática é como se serviços desde o SNI até a atual ABIN
tenham sido muito bons numa dinâmica de FBI (inteligência interna), mas por
aqui nunca houve nada de Intel externa como a CIA.Nesse modelo essas estruturas locais acabam lidando com
problemas parecidos aos de suas
equivalentes americanas, o próprio FBI tem uma história conturbada em relação a
perseguição de 'comunistas' dentro dos EUA, no mesmo período que o SNI
implantava uma estratégia parecida no Brasil.Mas pela propria dinâmica das estruturas de Intel americanas
isso acaba contrabalanceado por uma defesa dos interesses nacionais vindas da
CIA e do DoD( que em termos Intel tem alguma independência).Nessa discussão da Le monde, tem muita coisa que é do jogo,
mas pela inexistência de estruturas de intel o Brasil não soube se
proteger...daí procuradores cheios de boa vontade, e na busca por um
greencard/F1 são instrumentalizados para destruir a Odebrecht que em seu pico
foi um maiores empregadores do Brasil...é tipo destruir a
Boeing/Teledyne/Raytheon.... por fazer lobby.O Brasil deveria ter o operacionalizado o Itamaraty para
Intel externa, enquanto a ABIN...não se sabe para que serve, mas ao que tudo
indica poderia ser internalizada na PF sem maiores prejuízos.Poderia numa operação de contra inteligência relativamente
simples ter contornado muitos dos problemas que a Lava Jato gerou e até mais
recentemente ter evitado muitos fiascos gratuitos aos quais esse governo tem se
exposto.Intel interna e externa, são apenas algumas dimensões nas
quais o Brasil é carente, um dos maiores problemas mesmo é o total vazio que
ocorre quando se fala em cyber.Por outro lado pelas
falas do generalato contextualizadas pelos currículos da ESG/ECEME, que parecem presos na década de 60, é difícil ver um quadro de mudança.A Marinha e a Fab tem um perfil mais técnico (parte da formação acontece em instituições civis), mas por hora
carecem de direcionamento...interessante que alguns quadros até já possuem o
background técnico que seria necessário, mas não encontram espaço dentro das
forças.
“Lava Jato”, the Brazilian trap (lemonde.fr)
Originalmente no Facebook Daniel Rodrigues Parente | Facebook "
Conforme menciono no post do FB as estruturas de inteligência, historicamente
tem cumprido um papel confuso no Brasil. Mas se você olhar as questões internas
dos EUA nas décadas de 40- 60, que envolvem desde perseguição de jornalistas e
cineastas (na terra do tio Sam Disney Link To the F.B.I. And Hoover Is Disclosed - The New York Times (nytimes.com)), começa a ficar claro que direta ou indiretamente
por aqui o exército importou um problema que talvez nem existisse (o foco não é
se existia ou não, mas como o golpe de 64 se encaixava na estratégia global
americana do período e refletia questões internas dos EUA) , mas no final das contas a manutenção do factoide e o
fato do Brasil não ser mais um foco de preocupação para os EUA na década de 60...era
interessante pra embaixada e pra estratégia global e até interna dos EUA em vigor naquele período [o texto sobre o W Disney dá uma boa visão sobre a dinâmica interna do FBI nos EUA].
Em geral tanto a esquerda quanto a direita brasileira,
cinicamente ignoram a confusão global que era o mundo em 1964, e como o Brasil era peça secundária.
É interessante olhar brief presidencial americano, pra contextualizar o quadro global do momento.
Até pra contextualizar como a discussão da Guerra Fria aparecia na politica interna americana daquele período, e o Golpe no Brasil dividia espaço com a guerra do Vietnã em termos de atenção politica e midiática. Fora que era ano de eleição.
CENTRAL INTELLIGENCE BULLETIN | CIA FOIA (foia.cia.gov) para 1 de abril 1964
CENTRAL INTELLIGENCE BULLETIN | CIA FOIA (foia.cia.gov) para 2 de abril 1964
muito da execução da estratégia de inteligência era em alguma medida se
esconder jogando o enfoque em questões mais secundárias, do tipo se “existia ou não uma
ameaça comunista no Brasil em 1964?”.. quando na verdade o que importava era o
neutralizar o risco local, para focar na estratégia global e em alguma medida gerar conteúdo pra propaganda politica interna nos EUA.
Até que ponto a construção desse argumento tem origem autonoma no SNI, na embaixada ou propria mídia local no periodo? Carece de uma contextualização histórica, mas o Jango já vinha enfraquecido politicamente.
Com isso em mente dá até pra começar a visualizar, que o
problema ai é mais uma questão de que na época os militares brasileiros assumiram que “sim existia uma ameaça local”, não por de fato haver uma ameaça,
mas sim pelo que eles ganhariam seja na forma de poder, projeção midiática...e
sendo militares pelo hype em torno da interação com a inteligência americana. Não importa o que é verdade, mas o que a narrativa que eles assumiam lhes dava.
Essa
dimensão mais humana por trás dos grandes eventos é interessante, porque até hoje
essa disposição pra cooperar tem um papel importante no aliciamento de ativos
pelas agências de intel (principalmente americanas[ palestra acima dá uma boa perspectiva]) Policing the Past: The CIAand the Landscape of Secrecy - Richard Aldrich - YouTube...
Transitando um pouco entre passado e passado recente, pra por em perspectiva até que ponto houve intel externa na lava jato.
Enfim o
caso da Lava Jato descrito pela Le Monde é interessante porque você tem um
judiciário que idealiza o sistema americano, com isso uma disposição pra
cooperar, fruto de um soft power quase natural.
Em última instância qualquer impressão positiva, é
soft power, isso gera uma abertura com efeitos econômicos interessantes. Seja na
sua disposição de pagar para estudar nos EUA, - e pelo sistema de vistos atual, isso é pura transferência de renda de qualquer país para os EUA - ou mesmo quando
um país se alinha a outro por uma afinidade cultural, que não faz sentido
economicamente.
Hoje é interessante falar disso porque você viu o brasil, perseguindo um alinhamento econômico com os EUA, que
girava em torno de um alinhamento cultural "soft power" (todo mundo viu os mesmos filmes, estudou nas mesmas universidades), mas no final das contas apesar de toda
a tradição canavieira do interior paulista o Brasil ia acabar importando etanol
americano feito à base de milho.
Fala-se bastante em soft power, mas não existe uma preocupação
clara em definir soft power, quanto ele rende ou mesmo quanto ele custa.
Quanto o brand de Brasil perdeu em valor, e quanto a Coréia do Sul ganhou nos últimos anos? Essa comparação é interessante porque a produção e exportação de novelas [ e cultura de modo geral] é ponto importante nos dois países,mas isso tem se desenvolvido de modo mais eficiente no modelo de novelas curtas Sul coreano, que formou uma indústria e se profissionalizou [no Brasil tem a Globo e quase nada fora dela].
De modo geral, até para retomar o ponto principal: a
inexistência de uma estratégia de inteligência externa custou caro para o
Brasil, basta pensar que no seu pico todas as construtoras arrasadas pela lava
jato figuravam facilmente nos maiores empregadores do país. E, bom, ainda que
em alguma medida seja legítima a contenção de corrupção, faltou ao Brasil uma
operação de contra-inteligência externa que conseguisse colocar em perspectiva até
que ponto essa caça aos corruptos não estava sendo usada numa estratégia maior.
Chinese Methods for Industrial Espionage - YouTube Nessa questão da estratégia maior tem uma perspectiva do operacional disso no contexto da China a partir de 13m até 30m.
Essa questão de China é interessante porque a operação de Intel desde o fundamento,na diretiva do partido, tem foco na geração de valor economico, mas quando vocé olha falas de operativos do UK/US o foco é em defesa e segurança nacional e a dimensão de geração de empregos só aparece quando discussão chega ao congresso, com o lobby em torno das fábricas e de empregos. Enfim são diferentes modos de pensar o uso de intel.
A panel on espionage - The New Yorker Festival - YouTube Chamaria atenção pras falas da Stella( ex diretora do MI5)que reflete essa questão de segurança nacional, e UK é um arcabouço regulatório mais replicavel.
Pensando num possivel desenvolvimento no Brasil o modelo de intel Chines com foco economico faria mais sentido por aqui.
No caso americano ,por eles já controlarem o sistema financeiro ( ver a sanção que o DoJ aplicaria na Odebrecht (conforme texto da Le Monde) , e vem aplicando em executivos chineses) isso dá margem para as estruturas tradicionais de intel ignorarem essa dimensão, já que o próprio DoJ tem capacidade de executar isso
How Donald Trump has targeted Chinese companies with executive orders, sanctions | South China Morning Post (scmp.com) - Descreve as sanções à empresas chinesas sob Trump. o Biden tem focando o uso das sanções em indivíduos (caso da Carrie Lam Cheng Yuet-ngor citado nesse texto), geralmente diretores dessas mesmas empresas (o que em temos de discurso, é mais administravel do que a perseguição estrita que o Trump vinha tocando).
Os países precisam de estruturas que lhes permitam entender por
que as dinâmicas globais estão se desenvolvendo de determinado modo, quais os
sets de interesses envolvidos, até para que possam direcionar as discussões num
sentido que lhes seja favorável. E históricamente a inteligência externa tem atuado nesses gaps.
É fácil hoje para o Brasil e para França (afinal o Sarkozy
também tá preso hoje em dia[acho que por uns motivos mais aleatórios]) quererem
buscar um inimigo externo, mas tem muita coisa no texto da Le Monde que é natural ao jogo político
entre nações, mas para as quais o Brasil não estava preparado, afinal pra além da questão quanto a se
existia ou não uma coordenação de intel externa no desenrolar da Lava Jato... o
fato é que a estratégia só avançou porque encontrou espaço numa galera mais
jovem do judiciário, e ao que parece não
tinha ninguém pra colocar isso na perspectiva de que os EUA vinha numa
estratégia maior de guerra ao terror, e proteção as empresas americanas desde 2001
e do governo Bush/Cheney.
Ponto interessante que a Le Monde deixa de fora, que talvez tenha tido um peso importante é a relação que o Lula vinha desenvolvendo com o Ahmadinejad em 2009. Pelo curso que a história tomou de lá pra cá, talvez o peso dessa interação tenha sido maior do que a se poderia mensurar na época. Fica um questionamento se GSI/ABIN/ITAMARATY tinham alguma estratégia nessa relação naquela época?
Lula recebe Ahmadinejad em meio a polêmica - BBC News Brasil
Com mais detalhes do governo Bush/Cheney se tornando públicos nos últimos anos, fica claro que pelo background de DoD-Halliburton o Cheney era bem ativo na operacionalização de intel nesse periodo, com o foco em oriente médio.
Por mais que eu adore Night Train to Munich(1940), The
Ambassador(Morris West)... uma parte importante do trabalho de intel hoje é
o controle da narrativa de modo a gerar esses efeitos soft power, seja a CIA
negociando com editor de revista como vai ser a cobertura dada ao Venture Capital
deles (In-q-tel) Gilman Louie: In-Q-Tel andFunding Startups for the Government - YouTube, ou ainda promovendo
discussões internas em relação a como eles aparecem em hollywood e decidindo
assumir uma posição mais cooperativa[Palestra no primeiro video], essas são hoje as faces mais visiveis ( e razoavelmente bem aceitas) das operações de intel, em contraponto ao modelo mais 007. [o controle da narrativa]
Em outros termos:é mais Vice (2018) que qualquer 007. Em termos de conduzir o debate e a narrativa de modo mais palatável.
É claro que as interações CIA-Mossad para coordenar eventos no Iran ainda estão aí, mas sobre essas ninguém fala
publicamente.
IranianNuclear Scientist Mohsen Fakhrizadeh Killed By 'Terrorists,' Iran Says : NPR
Qasem Soleimani: US kills top Iranian general in Baghdad air strike - BBC News
De modo geral o problema do Brasil não é a interferência
americana, mas sim o fato do Brasil não estar preparado para lidar com essa
interferência.
Em outras palavras, num exemplo mais direto, por quê e como o DoD consegue defender publicamente um
contrato de defesa que é irracional (Nuclear disarmers can’t forget the communities that rely on military spending - Bulletin of the Atomic Scientists (thebulletin.org)) enquanto aqui no Brasil...
o
que resta da indústria de defesa emprega muito pouca gente (o que resta da Odebrecht
Defesa – Atual SIATT – emprega por volta de 100 pessoas...em EUA qualquer
contractor médio deve gerar pelo menos uns 10mil empregos)
...quando isso
chega no debate público tudo caminha para conservadorismo fiscal?! Bom, muito
disso passa pelo controle da narrativa no debate público, que no caso brasileiro do exemplo inexiste , mas o pessoal da Lava Jato soube usar isso.
Defense Primer: Department of Defense Contractors (fas.org)
O UK em termos de proporção ainda é um pouco menor,em relação ao US mas esse relatório dá uma perspectiva interessante do setor por lá. E é mas fácil achar dados consolidados por lá
Defence and Security Industrial Strategy (publishing.service.gov.uk)
Essa estrutura dos contractors, é interessante porque mesmo extrapolando o DoD (algumas mais especificas acabam sobre outros departamentos como o DoJ) umas boas parcelas do budget dos serviços de Inteligência, por baixo uns 30% acaba em intel outsourcing logo acaba sendo mais verba do budget para defesa/complexo industrial militar por fora do DoD.
(1) Are the CIA, DIA, NSA, etc. under the Department of Defense, or under some non-military governmental agency? - Quora
Home (intel.gov) --Hub Oficial
Ainda no âmbito de direcionar as discussões globais num
sentido que seja favorável ao Brasil, dependendo de como a dinâmica EUA/China
caminhar nos próximos anos é interessante que o Brasil esteja preparado para
lidar com interferências externas, e mesmo tirar vantagem das dinâmicas confusas
que emergem nesses desequilíbrios globais, e aqui a Suíça talvez seja o caso mais
clássico de ter sabido se posicionar em momentos de confusão global, pra
conseguir capturar algum upside...turns out that being neutral was a good
business back then, mas o Brasil vai precisar de estruturas de intel pra
conseguir entender o que tá acontecendo e capturar algum gain nas dinâmicas
globais.
Por fim deixo essa conversa, que mesmo não diretamente ligada a intel, passa um pouco pelas discussões que rodeiam o tema. E fala um pouco de como essa dimensão de intel é importante para uma estratégia nacional, até pelo progresso gerado pela competição entre países. Em outra dimensão dá pra ver um pouco da militarização do espaço que está em curso atualmente, tanto em China quanto em EUA.
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