O ano é 2021 e o Afeganistão reaparece no noticiário, a última vez que se fez menção a tal país foi ainda no pós 2001, uma menção tão secundária que ainda nos dias de hoje a distinção entre Iraq e Afeghnistan não é clara para muita gente.
Numa recapitulação dos eventos.
Após a queda das torres gêmeas os EUA se engajaram em dois países na região do oriente médio/ásia central.
No Iraq o objetivo é derrubar Saddam Hussein, numa operação de inteligência que ficou famosa por não ser muito eficiente. Já que a tese na qual a operação se baseou, era relativa à existência de armas químicas, que já não existiam mais no momento da invasão. No Afeganistão o objetivo era controlar a Al-Qaeda, que tinha uma ligação histórica com a região remontando as guerras com a União Soviética.
Como os EUA sabia das armas químicas?
Anos antes, esses dois países estavam em guerra, como o Iran já era um problema antigo dos EUA remontando a revolução, os EUA suportaram o Iraq nessa guerra, daí até hoje se acusa os EUA de terem fornecido a tecnologia de armas químicas para o Iraq (é uma especulação frequente nesse tópico).
Na real eram empresas alemãs, mas pelas dinâmicas internas da Alemanha do pós-segunda guerra é dificil apontar com clareza qual o set de interesses no forncecimento de Gás mostarda (entre outros itens) pro Iraq nesse periodo.
Iranian Revolution - Wikipedia
Ponto interessante para entender as dinâmicas da região, e superar a ideia de que é tudo por causa de petróleo...é entender que as pessoas acreditam na religião, e a legitimidade das figuras monárquicas da região emerge desse elemento teocrático.
Assim dá pra começar a entender que, sim, as motivações ocidentais são principalmente petróleo e contratos militares trilionários, mas na média as pessoas acreditam bastante naquilo pelo qual estão se dispondo a morrer. E essa é uma questão que se perde fácil, fácil em qualquer approach midiático, sobre a região, seja falando sobre o Hamas, Fatah e agora sobre o Taliban.
Já chegando na questão Afghan, o seguinte trecho dá uma dimensão da construção de legitimidade na região.
Se a região já é complicada, o Afghanistan em si é ainda repleto de peculiaridades.
Ao Norte os soviéticos, a oeste o Iran (epicentro Shia), ao sul o Pakistan que geralmente serve de proxy para a Saudi Arabia (epicentro Sunni). E mais recentemente a China se tornando um outro epicentro de poder.
Tem vários modos de explicar essa questão Shia-Sunni. Em termos de história Islâmica, o Islã começa na península arábica, num momento que o atual Irã, antiga Pérsia, ainda seguia a tradição zoroastra.
As cidades sagradas islâmicas são no KSA (Kingdom of Saudi Arabia), e esse elemento junto com o suporte financeiro que Riyadh oferece para a região, concede legitimidade a liderança que o KSA exerce no mundo islâmico. [Um ponto é que na época não existiam as fronteiras de hoje, daí emerge a importância de Jerusalém...teorias mais recentes, e não muito aceitas também atribuem uma razoável importância a cidade de Petra na Jordânia].
Calling Iranians “Descendants of the Magi” Is Actually a Compliment – LobeLog
Ainda tem uma infinidade de tópicos possíveis de serem abordados,mas acho interessante entrar na questão Afghan logo.
Qualquer apresentação sobre o Afghan invariavelmente caí na questão do terreno, é uma região naturalmente dividida por montanhas que até 2001 praticamente não tinha estradas, durante a ocupação se fez um esforço, no sentido de resolver isso. Contudo, na tática de guerrilha que impera entre as tribos da região, destruir e controlar essas poucas estradas é uma peça central na estratégia de controle das populações.
Outro ponto a se considerar é que a região é repleta cavernas, e o conhecimento desses sistemas era uma vantagem operacional absurda nessa técnica de guerrilha, e ainda é eficiente quando pensamos que cavernas são também proteções contra ataques de drone, que tem sido um operacional bastante utilizado nos últimos tempos entre as operações ocidentais.
Why Afghanistan Is Impossible to Conquer - YouTube
É interessante observar como essa distribuição das tribos transgride fronteiras. O Taliban é majoritariamente Pashtun, seguindo uma linha Sunni numa linha Wahhabism - Wikipedia que vai em direção ao ultraconservadorismo. Esse approach já causou um enfraquecimento no suporte ao grupo no passado.
Muito da identidade das tribos Afghans gira ao redor da figura do guerreiro, defendendo a região contra invasores. É difícil falar numa identidade nacional Afghan com alguma uniformidade, geralmente a identidade está mais associada ao grupo tribal. Ponto interessante é que essa é uma peculiaridade Afghan, na medida em que as dinâmicas de identidade nacional são razoavelmente consolidadas na região ao redor das histórias de grandes líderes e impérios. O problema é que no caso Afegão, em boa parte da narrativa histórica eles estão resistindo a alguma dominação, e essa resistência acontece mais na forma do guerreiro tribal do que através de alguma estrutura de estado nação.
Esse trecho realça um pouco uma outra dinâmica peculiar do Afghanistan, que é essa interação de uma dinâmica de guerreiro tribal com a religião. No caso Afegão, esses são eventos históricos ainda muito recentes, mesmo quando comparados aos outros países da região.
Analyses - Madrassas | PBS - Saudi Time Bomb? | FRONTLINE | PBS
Um ponto interessante pensando nessa dinâmica de colaboração da sociedade Afghan com o Taliban, é que mesmo sendo incerto quanto dessa colaboração é na verdade coerção; o Taliban se mostra como um grupo que já tem uma estrutura organizacional que lhe permite exercer controle sobre a sociedade. E o próprio exercício desse poder, foi elemento central no que tange a impedir que o governo de Kabul atingisse alguma legitimidade interna, isso enquanto perdia legitimidade diante da comunidade internacional.
No geral dá para continuar a mapear o Afeganistão e o Taliban, em várias dimensões ainda, no caso vou me limitar a indicar esse artigo
Taliban:An organizational analisys
Taliban:An organizational analisys+Destaques (Com meus destaques)
No mais:
Diferente do Taliban de outros momentos, esse atual processo está sendo negociado, com diferentes players. Discretamente até os EUA, estão mantendo um canal com a liderança do TalibanCIA Director William Burns held secret meeting in Kabul with Taliban leader The Washington Post
A consolidação do poder não vai ser um processo óbvio, vai depender muito do Taliban conseguir manter alguma coesão entre as células da base (ver o texto).
Risco: Vários Warlords (espécie de líderes tribais/lideres de milicias financias pelo governo de Kabul) estão buscando asilo fora do Afghanistan. Former warlord discusses his militia against the Taliban (pri.org) , é incerto quão estruturadas essas operações estavam, então existe o risco dessas operações estarem se reorganizando. Se o governo do Taliban não conseguir se consolidar, dinâmicas de guerra civil podem começar a aparecer.(Afghan militias forced to fight Taliban blame America's 'abandonment' - YouTube)
O Taliban é um fenômeno de um grupo de tribos que domina boa parte região, mas há outras tribos, com diferentes estruturas linguísticas e sociais, e todas armadas, então esse é um outro canal possível para surgir uma insurreição
““Afghanistan is like a weapons depot,” he said. “There is no shortage of guns. Every household has them. Some are old AK-47s that people hid away from the last wars, others are more recent.”” Ref
No geral o sucesso/fracasso deste governo vai depender de como ele vai se equilibrar entre os centros poder do Muslim World (KSA e Iran). Apesar da atenção que Índia, Rússia e China têm ganhando nessa cobertura midiática, os únicos países com uma clara agenda para a região são KSA e Iran; geralmente essa agenda é executada através de proxyes. Bitter Rivals: Iran and Saudi Arabia, Part One (full film) | FRONTLINE - YouTube
Sobre a postura dos EUA, é razoável: O Afeganistão vinha sendo mais uma questão do UK+NATO, e principalmente depois da captura do Osama Bin Laden vinha sendo só mais questão de manutenção de statusquo. Fora que a saída dos EUA atende a um set de interesses regional, que pode favorece a retomada do acordo nuclear com o Iran.
Dica de Filme:
Os três abordam diferentes ângulos da mesma história, e são bem complementares